COZINHAR COMO ARTE
por ramiro murillo
Logo que saí da casa de meus pais, eu lidei com a tarefa de cozinhar para mim mesmo e descobri que aquilo era muito legal: não era um sacrifício, como ouvia de muitos amigos. Na verdade, hoje eu considero o cozinhar um dos ofícios mais sacros e prazeirosos.
Tem gente que diz: “Ah, não gosto de cozinhar só pra mim, então só cozinho quando vem gente em casa”. Eu nunca concordei com isso. E tenho certeza que as chefs e os chefs mais admirados do mundo amam cozinhar só para eles.
Não dizemos que, antes de amarmos os outros, devemos aprender a amar a nós mesmos? Pois com cozinha eu acho a mesma coisa: cozinhar para si é um gesto de amor próprio, de autocuidado. É também o momento em que podemos fazer testes, criar receitas, sem o medo de errar e desagradar os outros.
Mas é, principalmente, um momento meditativo. Quando cozinho sozinho - que boa esta sonoridade -, entro num estado de presença e conexão que só atinjo quando danço ou toco música. Fico absorvido pelo gesto corporal de cortar e preparar os ingredientes, pela ordem dos processos, os diferentes tipos de uso do fogo. Cozinhar não deve ser um gesto linear: é algo dinâmico.
É como uma grande orquestra, que flui com suspensões, pausas, acelerandos e ritardandos. É também dramatúrgica e coreográfica: envolve apresentação dos personagens, atração e repulsão, choques, conflitos, desafios e um gran finale em nossa mesa.
Como cada alimento tem um tempo diferente segundo o tipo de cozimento que se deseja, o início do cozinhar é um grande arranjo e preparo de ingredientes. Enquanto montamos o mis en place de alguns, outros já estão em processo lento de transformação. O feijão passou a noite lentamente inchando na água, e, um pouco antes do almoço, vai ser submetido a uma pressão rápida e violenta. Pode ser que utilizemos um repolho que ficou meses fermentando para finalmente virar chucrute e entrar em nosso prato.
E cada som da cozinha tem um ethos: o picar rítmico e seco de um maço de cebolinhas, o corte suave, macio e silencioso do peixe, o pipocar sutil do gergelim na frigideira, o silvo intenso e agudo da carne na grelha. Cada timbre compõe nossa orquestra, traçando contrastes e semelhanças.
A disposição das panelas, das tábuas na pia, dos molhos, tudo pode ter uma abordagem estética, fotográfica. E, é claro, os aromas que nascem de cada procedimento nos levam no colo e nos fazem permanecer ali em pé, empenhados em criar uma nova receita, ou de aprimorá-la, ou de simplesmente executar cada passo com perfeição e chegar naquele sabor tão conhecido e almejado.
Foi cozinhando que percebi que meu sonho não era ser cientista (me formei em física na faculdade, e segui trabalhando com arte), mas alquimista. Só que eu achava que alquimia era fazer coisas impossíveis cientificamente, e não estava muito interessado em criar ouro a partir de outras substâncias.
Cozinhar sim é criar um ouro possível. Os alimentos passam por diferentes tipos de processos fisicoquímicos, e quando estão em nosso prato, já não são os mesmos. Mesmo um pepino que foi finamente fatiado já é algo muito diverso do pepino in natura.
Podemos alterar a apreciação do sabor e da textura dos alimentos através da escolha de como vamos cortá-los. Tiras finas, rodelas, pedaços grandes e rústicos, mais casca, menos casca. Se foi triturado, amassado, ou golpeado.
Cada gesto corporal sobre o alimento o transforma. A batata cozida é uma coisa, o purê é outra, mesmo se for somente batata e sal.
A disposição dos ingredientes no prato também influencia a maneira como nos relacionamos com ele. O prato deve ser bem apresentado: o cozinheiro é um esteta.
Cozinhar então é arte, alquimia, ciência e espiritualidade. E quando ofereço um prato que cozinhei para alguém, estou abrindo minha intimidade. É como se dissesse: “Olha, isso é algo que gosto muito de comer, e como a gente se gosta muito, acho que você vai gostar também.”
Bom apetite!
Ramiro Murillo
Janeiro de 2020